Carros
Põe na conta do aquecimento global
Outro dia recebi aqui em casa, gratuitamente, a edição de janeiro da revista mineira "Encontro".
A "Encontro" é uma revista até bem caprichada, com papel bom, diagramação decente, entrevistas com gente de peso (essa trazia o ministro Ciro Gomes),
muita propaganda do governo estadual e
muitas colunas sociais. Sempre a vejo aos montes em cafés e consultórios de dentistas aqui por BH.
Então ali estava eu, folheando casualmente a "Encontro" e pensando comigo que papel eu tinha assinado para receber a revista de graça, quando descobri o suplemento que vinha junto com ela, chamado "Encontro Ambiental". Na capa deste uma pequena manchete chamou minha atenção: "
Clima Ruim -- Aquecimento Global faz Mal para a Saúde". O que veio a seguir, meus amigos, foi a pior peça jornalística que eu vi em muito tempo. Eis como tudo começava:
O último relatório de avaliação do Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU mostra que as temperaturas mundiais poderão sofrer, até o fim do século, um aumento de 1,4 a 5,8 graus celsius. A variação aponta para consequências nada animadoras como furacões, terremotos, inundações em algumas partes e desertificação em outras, extinção de espécies, fome, doenças, miséria...
Alguém pode me explicar como o aumento da temperatura pode causar
terremotos!? Parece mais que a autora, sem fazer pesquisa nenhuma, jogou todas as catástrofes que pôde imaginar numa mesma enumeração. Faltaram apenas o impacto de um asteróide gigante e o Godzilla.
Ainda assim, desconfiado de tanta tragédia junta procurei o resumo do relatório do IPCC que a autora cita. Pelo que li, no caso dos furacões, o IPCC reconhece que não existe nenhuma evidência nos poucos dados disponíveis de que eles vêm se tornando mais
freqüentes por causa do aumento da temperatura dos oceanos. Diga-se de passagem que, segundo o IPCC, no hemisfério sul a temperatura dos oceanos não aumentou nem um tiquinho no último século.
Mais alguns parágrafos, todos muito ruins, e vinha o seguinte:
"O aquecimento global também traz preocupação quando o assunto são as doenças vetoriais, como a dengue e a malária. (...) prevê que o aquecimento possa provocar epidemias das duas doenças, com efeitos catastróficos. (...) Em todo o país, o número de casos de dengue notificados até meados deste ano superou em 20% o total do mesmo período de 2006. Pode ser por causa do aquecimento global que favorece a multiplicação do mosquito durante todo o ano."
Pode ser, mas não é. O verdadeiro motivo para o aumento do número de casos da doença não só no Brasil, mas nos outros países subdesenvolvidos, é que aparentemente o
Aedes Aegypti evoluiu e desenvolveu imunidade ao veneno tradicionalmente usado para combatê-lo; para piorar o danado agora é capaz de se reproduzir também em água suja e até sem água.
De qualquer maneira colocar a culpa no aquecimento global por alguma coisa só comparando os dados de um ano com o anterior é o pior exercício de estatística que eu já vi. Ainda mais que a autora nem se preocupou em saber se 2007 foi
mesmo mais quente que 2006.
E a jornalista seguia colocando vítimas na conta do aquecimento global:
"Mais: estudos mostram que, com as mudanças climáticas, cerca de 20 a 30% dos vegetais e animais poderão ser extintos. Com isso haverá redução do alimento. Menos alimento, mais fome, mais desnutrição e morte. Sabe-se também que a água potável vai ficar mais escassa. Menos água, mais desidratação e morte. E o efeito cascata está formado."
Eu não sei de onde a autora tirou esses dados, mas as pesquisas têm mostrado que tanto as florestas tropicais quanto a agricultura estão na verdade se
beneficiando do aquecimento global, já que com mais CO2 no ar e mais tempo de luz solar -- que compensa a quantidade menor de chuvas na época da seca -- a fotossíntese é favorecida. Graças a isso,
no geral, a produção de alimentos deve aumentar com o aquecimento global, não o contrário.
A extinção de até 1/4 das espécies animais e vegetais, que de fato é apregoada por alguns cientistas, é uma coisa terrível sem dúvida, mas
de fome só vão morrer por causa disso as pessoas que tiverem uma dieta baseada em ursos polares, lêmures, algumas espécies raras de sapos e certas aves (que não o frango).
O quadro de desidratação e morte que a autora pinta tampouco é verdadeiro, embora nesse caso ela seja apenas mais uma indolente vítima da eco-paranóia que predomina na mídia. O próprio IPCC afirma que não vai faltar água em toda a parte. As regiões mais afetadas por secas serão aquelas onde o líquido provém exclusivamente das chuvas; nas regiões mais altas, que dependem do degelo das montanhas, como boa parte da Ásia, vai haver
mais água, não menos.
Quando eu achava que já estava preparado para tudo, o texto continuava assim:
"Hoje se tem uma série de alterações por causa do clima. Este ano, por exemplo, devido ao clima frio e seco, aumentou muito o índice das doenças de inverno, como pneumonias, asma e descompensação de doença pulmonar obstrutiva crônica.".
Me corrijam se eu estiver errado mas se no
aquecimento global o planeta fica mais
quente, por que deveríamos temer as doenças de
inverno? Eu não sou médico nem nada, mas pelo que eu entendi vão haver
menos casos de pneumonias, asmas e descompensação de doença pulmonar obstrutiva crônica se os invernos forem mais moderados, não é?
O trecho acima vinha acompanhado da figura de um menininho fazendo uso de um inalador, com a seguinte legenda:
"O clima seco favorece o crescimento de casos de doenças respiratórias nas crianças."
É difícil entender como a autora chegou a conclusão nada óbvia (e até anti-intuitiva; o que é estranho já que intuição é tudo o que ela parece ter usado para escrever) de que o clima vai ficar mais seco com o aquecimento global.
Como a capacidade do ar de reter o vapor de água aumenta exponencialmente com a temperatura, a umidade específica deverá
aumentar com o aquecimento global, não diminuir. Como com isso aumentam também a evaporação e a precipitação, aumentam junto o risco de chuvas torrenciais e inundações.
Não correu muita tinta e a autora conseguia dizer mais uma bobagem:
"O professor (...) afirma que teoricamente as doenças de pele serão mais incidentes. 'Principalmente as relacionadas ao verão, como câncer de pele, assaduras, micoses e foto-envelhecimento' exemplifica. Os raios ultravioleta também podem ser maléficos aos olhos. Segundo o oftalmologista (...) quanto mais a pessoa ficar exposta ao sol, principalmente sem proteção de óculos escuros, maiores as chances de desenvolver problemas oculares, como a catarata."
O aumento da exposição aos raios ultravioleta, que causa todos os males citados acima, com exceção das micoses e assaduras, são uma conseqüência de outro efeito que nada tem a ver com o aquecimento global: o
buraco na camada de ozônio.
O buraco na camada de ozônio é uma diminuição da concentração de ozônio da atmosfera causada pela emissão de
clorofluorcarbonetos (CFC), presentes principalmente em aerossóis e equipamentos de refrigeração (diferentemente do CO2 que causa o aquecimento global, só o homem produz CFC, então não dá pra dizer que não foi a gente que estragou o planeta ou, como diria o Homer Simpson, que já estava assim quando chegamos...). Como o ozônio é responsável pela absorção da maior parte dos raios ultravioleta do sol, acredita-se que sem esta camada protetora a vida na Terra estaria mais sujeita aos efeitos nocivos da radiação (embora, pela falta de dados históricos, ainda não seja possível afirmar que houve realmente algum aumento na incidência de raios ultravioleta).
E como
pièce de résistance:
"A temperatura mais quente propicia ainda o aparecimento nos pés, de frieiras e micoses de unha. (...) Outra consequência, na opinião da especialista, é o distúrbio da sudorese. 'Ora a pessoa vai transpirar muito, ora transpirar pouco. Isso pode levar ao distúrbio da sudorese, que causa o aparecimento de cravos plantares.' "
Ou seja, por causa do aquecimento global as pessoas vão suar mais. Tudo bem, de alguma maneira eu já esperava por isso. Agora culpar o aquecimento global por... frieiras? Aquele negócio que se evita com uma toalha seca e um pouquinho de higiene?
Errado não está, mas eu me pergunto: se alguém estivesse compilando uma lista das coisas ruins causadas pelo aquecimento global, começando por "aumento do nível dos oceanos" bem no topo, seguido de "proliferação de malária e dengue", "inundações" e "extinção de espécies" logo abaixo, será que haveria realmente espaço nessa lista para "aumento da incidência de frieiras"?
Discutir os efeitos do aquecimento global e o papel do homem nele é uma tarefa espinhosa, com argumentos mais políticos do que científicos de ambos os lados (argumentos que eu não estou preparado para endossar ou refutar nesse momento). Compreensivamente os jornalistas que embarcam nessa tarefa quase sempre abraçam por
default este irresistível discurso eco-paranóico pré-apocalíptico. Neste sentido a única novidade do artigo da revista "Encontro" foi saber que caminharemos para o Armagedon com os pés cheios de frieira...
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